TESTEMUNHO DA IRMÃ MARIA GONÇALVES
Neste texto a Irmã Maria Gonçalves, SNSF, conta-nos a sua experiência nos primeiros tempos do Renovamento Carismático em Portugal. Sentindo-se interpelada por Jesus, fundou a Comunidade “Vida e Paz”, aprovada canonicamente por Dec. de S. Eminência o Senhor Cardeal Patrirca de Lisboa, datado de 17-4-1989, para apoiar os “Sem-Abrigo”. Presentemente a Comunidade Vida e Paz conta com 3 centros para acolhimento, recuperação e apoio à reinserção.
(site: www.cvidaepaz.pt )
Primeiros encontros
Em 1974 encontrava-me em Missão de serviço na Comunidade Religiosa “Servas de Nossa Senhora”, que desde o início colabora, a vários níveis, no Santuário de Fátima.
Conhecia o Padre Lapa desde longa data. Nesse Verão regressou de Roma, onde tinha passado um ano. Na sua passagem pelo Santuário de Fátima, fez-me uma visita e partilhou comigo a sua experiência em Roma, ao nível do Renovamento Carismático. Ouvi com interesse, mas um pouco céptica. Mais tarde, propus-lhe fazer uma nova partilha com um pequeno grupo de pessoas, embora a minha postura fosse mais como observadora do que em plena adesão.
A primeira reunião, com 12 participantes (sacerdotes, religiosos/as e uma jovem leiga), decorreu na salinha de visitas da casa de Nossa Senhora do Carmo do Santuário de Fátima, onde houve partilha e oração. Essas reuniões passaram a ser semanais.
Nessa ocasião encontrava-se no Santuário, em férias e a colaborar nas actividades, o Padre Manuel Couto que, nas celebrações na Capelinha das Aparições, ia falando aos peregrinos nessas reuniões de oração. O número de participantes aumentava de semana para semana e o salão do Santuário, com capacidade para 200 a 300 pessoas, depressa começou a estar cheio.
Aquele primeiro grupo preparava os encontros, reunindo-se previamente em oração e partilha e, de igual modo, no fim de cada grande encontro, em avaliação e discernimento do que se tinha passado e em acção de graças.
Mudança interior
As empregadas do Santuário também começaram a aderir e rapidamente verifiquei mudanças notórias nas suas vidas e comportamentos e maior responsabilização nas suas tarefas, num clima de muita paz e alegria. Estes foram os primeiros sinais visíveis da actuação de Deus, que me levaram a concluir “esta experiência de Deus faz, realmente, as pessoas mudarem”. Foi este o sinal, o grande toque para eu própria me dispor interiormente a aderir a esta nova forma de vivência de Fé.
Então dirigi-me ao Senhor, dizendo: “Isto não é para entender pela razão. Ilumina-me, Senhor e faz de mim o que entenderes”. E o Senhor aproveitou literalmente estas palavras.
Nessa mesma noite realizou-se o grande Encontro de Oração, aparentemente igual aos outros, mas completamente diferente para mim. Tive uma sensação de Encontro com o Senhor, de um modo muito pessoal e muito íntimo. Foi uma experiência envolvente de comunhão, de presença ininterrupta, uma sensação de pertença, acompanhada de profunda paz interior.
Sentia uma vontade imensa de louvar a Deus, continuamente. No fim do Encontro de Oração, apenas desejava estar só e louvá-Lo. Por isso nessa noite não partilhei esta experiência com mais ninguém, guardei segredo. Tinha ânsia de estar só com Ele e desejava que a reunião final não demorasse muito tempo. Depois de todos se retirarem subi para a capela do 1º andar e aí fiquei, primeiro em louvor silencioso, depois com expressões verbais. Apetecia-me ficar ali mais e mais mas, pensando disciplinadamente nos meus compromissos do dia seguinte, resolvi ir deitar-me. No dia seguinte acordei na mesma atitude de louvor, que se prolongou por mais de uma semana. Vivia em louvor permanente, quer estando a trabalhar, ou atendendo pessoas, ou qualquer outra actividade.
Foi uma verdadeira efusão do Espírito. Já era consagrada, mas foi um tempo de “namoro” mais forte, que mudou, em alguns aspectos, a minha vida. A Palavra de Deus passou a ser mais saboreada e mais clarividente e a intimidade com Deus mais profunda, atingindo níveis do meu ser antes não alcançados. Comunicou-me mais força interior, a paixão por Ele tornou-se mais intensa e a interpelação pelos marginalizados mais acutilante.
Projectada para os irmãos
A força interior que me invadia era também transmitida às pessoas que me contactavam. A reforçar esta realidade passou-se o seguinte:
Uma pessoa revoltada com determinada situação veio procurar-me. Sentindo-me impotente para a ajudar, ia repetindo interiormente: “Santa Maria, Mãe de Deus, roga por esta pessoa, agora”. Senti que a pessoa ia acalmando. Mais tarde comunicou-me que esse momento tinha sido muito marcante para ela.
Este foi apenas um dos casos, entre outros.
Desde sempre fui muito sensível aos problemas sociais, começando pelo exemplo da minha mãe, continuado pela formação e Carisma da Congregação Religiosa a que pertenço. Foi progressivo o apelo em relação aos mais excluídos da Sociedade.
Aconteceu a dada altura uma interpelação muito forte e vivencial como que o Senhor a dizer-me: “Eu amo muito o meu povo que sofre e preciso que me tornem visível no meio dele para o libertar”. Esta interpelação aconteceu durante uma Eucaristia na Capelinha das Aparições, celebrada em Assembleia do Renovamento Carismático no mês de Novembro.
Foi uma consciencialização clara da necessidade de levar Jesus Cristo aos irmãos mais pobres. Não era apenas a ideia para fazer algo, mas sim o envio para que Jesus pudesse actuar no meio do seu povo, porque Ele é o único que salva e transforma. Depois da Eucaristia, partilhei esta interpelação com o Eng. Carlos Fernandes, de Santarém, o qual me confirmou ter feito a mesma experiência nessa mesma Eucaristia.
Íamos constatando que a acção de Jesus Cristo junto de cada pessoa a libertava no seu todo (física, psicológica e espiritualmente), curava as doenças e perdoava os pecados, reestruturando-as como pessoas renascidas. A minha preocupação social ia tomando forma.
Os “Sem abrigo”
Em escuta e docilidade à condução do Espírito de Deus, fomos delineando um projecto integrado que fosse uma resposta adequada às multifacetadas problemáticas de uma população concreta: os “Sem Abrigo”.
Já em Lisboa, orámos e partilhámos algumas vezes na Capela do Centro Comercial das Amoreiras com o grupo
“Emanuel”, cuja servidora era a Irmã Zulmira Cunha, da minha Congregação religiosa. Formou-se um outro grupo maior, que reunia semanalmente numa das salas pertencentes ao mesmo espaço da Capela, tendo-nos sido concedida autorização pelo Senhor D. Albino Mamede Cleto, ao tempo Bispo Auxiliar de Lisboa.
Em 1989 trabalhava no secretariado geral do Episcopado situado no Campo dos Mártires da Pátria. Observava todos os dias, nesse jardim, as condições infra-humanas em que muitas pessoas vagueavam e pernoitavam nas ruas de Lisboa, às quais não podíamos passar indiferentes.
O grupo Emanuel foi uma ajuda importante, em oração, e alguns dos seus elementos acompanharam-nos nos nossos primeiros contactos na rua, mantendo-se, ainda hoje empenhados, dentro das suas possibilidades.
Numa reunião de oração e discernimento na salinha de visitas da minha Comunidade religiosa (na Rua Silva Carvalho), em que participavam Carlos Fernandes, Eduarda Passos e eu, foi inspirado o nome da Comunidade que ia surgir, na Palavra de Deus, na Carta de S. Paulo aos Romanos, cap. 8 (os desejos do Espírito são Vida e Paz…)
Esta Comunidade “Vida e Paz” tem sido sempre acarinhada com o apoio atento e empenhado dos grupos de oração do Renovamento Carismático, quer em oração quer em trabalho ou donativos em espécie ou dinheiro, pelo que estamos muito agradecidos a todos.
Na realidade a oração conduz à Missão. Quem se encontra com Deus é projectado no serviço aos irmãos.
Ir. Maria Gonçalves
Entrevista para Pneuma-RC
Abril 2002