Ano Sacerdotal

Ano Sacerdotal, tempo de renovação e conversão

Quando, no ano passado, Bento XVI realizou a sua primeira visita pastoral aos Estados Unidos, disse, em 17 de Abril, aos fiéis reunidos no estádio nacional de Washington: 
Eu vim para repetir a urgente exortação dos Apóstolos à conversão, para o perdão dos pecados, e para implorar ao Senhor uma nova efusão do Espírito Santo sobre a Igreja, neste País.

A resposta da Igreja dos Estados Unidos ao convite do Papa ao renovamento e à conversão é seguramente estimulada pelo Ano Sacerdotal, que estamos a viver. A história demonstra que uma das vias mais eficazes para o renovamento da Igreja é o renovamento dos seus ministros que, como pais espirituais, estão ao serviço dos rebanhos que lhes foram confiados, e estão por isso em condições de lhes transmitir a mensagem evangélica com renovado vigor e amor sacerdotal. 

O renovamento espiritual dos sacerdotes será uma das graças deste ano especial. Ao anunciá-lo, o Pontífice reconheceu a obra excepcional desenvolvida pelos padres, mas também evidenciou que o Ano Sacerdotal tem a finalidade de «favorecer a tensão dos sacerdotes para a perfeição espiritual» (discurso ao plenário da Congregação para o Clero, 16/03/2009); e exortou-os por isso a serem «homens de intensa oração, que cultivam uma comunhão de amor e de vida com o Senhor» (discurso à Academia Pontifícia Eclesiástica, 23/05/2009). […] 

As dioceses dos Estados Unidos responderam à solicitação do Ano Sacerdotal oferecendo novas oportunidades de renovamento: quer encorajando os sacerdotes a aprofundar a oração e o empenho para manter as suas promessas, quer pedindo aos fiéis leigos e aos religiosos que os ajudem com as suas orações. 

Alguns bispos já escreveram cartas aos sacerdotes ou organizaram encontros específicos com eles. Ao mesmo tempo, condividi ram alegrias e desafios pessoais, encorajando-os a intensificar os esforços para aprofundar a vida de oração e para corresponder às numerosas e diversas exigências pastorais dos seus rebanhos; solicitando aos fiéis para amarem os irmãos e para viverem com coragem o Evangelho na vida familiar, na obra de educação católica, na protecção da vida humana desde a concepção até à morte natural. […] 

Para apoiar os sacerdotes na oração, foram organizados muitos retiros a nível local, nacional e internacional. […] Outras instituições católicas, em particular seminários, acolheram encontros sobre vários temas ligados ao sacerdócio, com a participação de docentes e do clero local.

Para ajudar os sacerdotes com a oração, o Papa recordou, na já citada carta, as palavras de S. João Maria Vianney: «um bom pastor, um pastor segundo o coração de Deus, é o tesouro mais precioso que o Senhor pode conceder a uma paróquia; e um dos dons maiores da divina misericórdia». […] 

Certamente, a Igreja dos Estados Unidos está grata pelo Ano Sacerdotal. Os próprios fiéis acolheram favoravelmente o convite para apoiarem os sacerdotes com a sua oração. Ao mesmo tempo, nós, sacerdotes, saudamos com alegria a oportunidade de reflectir novamente sobre o empenho de ser modelos de bom pastor, dignos ministros do altar e servidores fervorosos e generosos do Evangelho. Confiamos em que o renovamento do empenho sacerdotal produzirá uma nova efusão do Espírito Santo sobre a Igreja do nosso País.

Mons. James Checchio 
(Reitor do Colégio Pontifício Norte-Americano)

Sobre o Sacerdócio

Extracto da homilia de Bento XVI, por ocasião do encerramento do Ano Sacerdotal, 11/06/2010, solenidade do Sagrado Coração de Jesus, Praça de S. Pedro. 

Prezados irmãos no ministério sacerdotal,
Amados irmãos e irmãs,

1. O Ano Sacerdotal, que celebrámos 150 anos depois da morte do Santo Cura d’Ars, modelo do ministério sacerdotal no nosso mundo, está para terminar. Deixámo-nos guiar pelo Cura d’Ars, para voltarmos a compreender a grandeza e a beleza do ministério sacerdotal. O sacerdote não é simplesmente o detentor de um ofício, como aqueles de que toda a sociedade tem necessidade para nela se realizarem certas funções. É que o sacerdote faz algo que nenhum ser humano, por si mesmo, pode fazer: pronuncia em nome de Cristo a palavra da absolvição dos nossos pecados; e assim, a partir de Deus, muda a situação da nossa vida. Pronuncia sobre as ofertas do pão e do vinho as palavras de agradecimento de Cristo que são palavras de transubstanciação – palavras que O tornam presente a Ele mesmo, o Ressuscitado, o seu Corpo e o seu Sangue; e assim transformam os elementos do mundo: palavras que abrem de par em par o mundo a Deus e o unem a Ele. 

Por conseguinte, o sacerdócio não é simplesmente «ofício», mas sacramento: Deus serve-Se de um pobre homem a fim de, através dele, estar presente para os homens e agir em seu favor. Esta audácia de Deus – que a Si mesmo Se confia a seres humanos; que, apesar de conhecer as nossas fraquezas, considera os homens capazes de agir e estar presentes em seu nome – esta audácia de Deus é o que de verdadeiramente grande se esconde na palavra «sacerdócio». Que Deus nos considere capazes disto; que deste modo Ele chame homens para o seu serviço e Se prenda assim, a partir de dentro, a eles: isto é o que, neste ano, queríamos voltar a considerar e compreender.

Queríamos despertar a alegria por termos Deus assim tão perto, e a gratidão pelo facto de Ele Se confiar à nossa fraqueza, de Ele nos conduzir e sustentar dia após dia. E queríamos assim voltar a mostrar aos jovens que existe esta vocação, esta comunhão de serviço a Deus e com Deus; melhor ainda, que Deus está à espera do nosso «sim». Juntos com a Igreja, queríamos novamente assinalar que esta vocação devemos pedi-la a Deus. Pedimos operários para a messe de Deus, mas este pedido a Deus é simultaneamente Deus que bate à porta do coração de jovens que se considerem capazes daquilo de que Deus os considera capazes. 

2. Era de esperar que este novo resplendor do sacerdócio não fosse visto com agrado pelo «inimigo»; este teria preferido vê-lo desaparecer, para que, em definitivo, Deus fosse posto fora do mundo. E assim aconteceu que, precisamente neste ano de alegria pelo sacramento do sacerdócio, vieram à luz os pecados dos sacerdotes – sobretudo o abuso contra crianças, no qual o sacerdócio, enquanto serviço da solicitude de Deus em benefício do homem, se transforma no contrário. 

Também nós pedimos insistentemente perdão a Deus e às pessoas envolvidas, enquanto pretendemos e prometemos fazer tudo o que for possível para que um tal abuso nunca mais possa suceder; prometemos que, na admissão ao ministério sacerdotal e na formação ao longo do caminho de preparação para o mesmo, faremos tudo o que pudermos para avaliar a autenticidade da vocação; prometemos que queremos acompanhar ainda mais os sacerdotes no seu caminho, para que o Senhor os proteja e guarde em situações penosas e nos perigos da vida. 

Se o Ano Sacerdotal devesse ser uma glorificação do nosso serviço humano pessoal, teria ficado arruinado com estas vicissitudes. Mas, para nós, tratava-se precisamente do contrário: sentir-mo-nos agradecidos pelo dom de Deus, dom que se esconde em «vasos de argila»; e que, sem cessar, através de toda a fraqueza humana, concretiza neste mundo o seu amor. Assim, consideramos tudo o que sucedeu como um serviço de purificação, um serviço que nos lança para o futuro e faz agradecer e amar muito mais o grande dom de Deus. 

Deste modo, o dom torna-se o compromisso de responder à coragem e à humildade de Deus com a nossa coragem e a nossa humildade. Nesta hora, a palavra de Cristo, que proclamámos no cântico de entrada desta liturgia, pode dizer-nos o que significa tornar-se e ser sacerdotes: «Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de Mim, que Eu sou manso e humilde de Coração» (Mt 11, 29). 

3. Celebramos a festa do Sagrado Coração de Jesus e, com a liturgia, por assim dizer lançamos um olhar dentro do Coração de Jesus, que, na morte, foi aberto pela lança do soldado romano. Sim, o seu Coração está aberto por nós e aos nossos olhos; e deste modo está aberto o Coração do próprio Deus. A liturgia dá-nos a interpretação da linguagem do Coração de Jesus, que fala sobretudo de Deus como pastor dos homens e, deste modo, manifesta-nos o sacerdócio de Jesus, que está radicado no íntimo do seu Coração; indica-nos assim o perene fundamento e também o critério válido de todo o ministério sacerdotal, que deve estar sempre ancorado no Coração de Jesus e ser vivido a partir dele. […]

(Enc. Redemptoris missio, 1)
Fonte: Agência Fides, 30/06/2010.

O que diz o Santo Padre sobre a Educação

DISCURSO DO PAPA BENTO XVI À ASSEMBLEIA GERAL DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL ITALIANA (C.E.I.)
Quinta-feira, 27 de Maio de 2010

Incluímos seguidamente (quase na íntegra) um recente discurso de Bento XVI sobre a questão educativa (em Itália é chamada a emergência educativa), dirigido à Assembleia dos Bispos Italianos, que promoveram a publicação de um relatório nacional e vão dedicar os próximos anos a este tema principal. Para mais fácil leitura, introduzimos parágrafos e números; e alguns sublinhados a negrito.

Venerados e estimados Irmãos!

1. No Evangelho proclamado no domingo passado, solenidade de Pentecostes, Jesus prometeu-nos: “O Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, Esse ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo quanto vos tenho dito” (Jo 14, 26). O Espírito Santo orienta a Igreja no mundo e na história. Graças a este dom do Ressuscitado, o Senhor permanece present e ao longo do transcorrer dos acontecimentos; é no Espírito que podemos reconhecer em Cristo o sentido das vicissitudes humanas. O Espírito Santo faz-nos Igreja, comunhão e comunidade incessantemente convocada, renovada e relançada rumo ao cumprimento do Reino de Deus.

Na comunhão eclesial estão a raiz e a razão fundamental da vossa reunião e do meu renovado encontro convosco, com alegria, por ocasião desta assembleia anual; é a perspectiva com que vos exorto a enfrentar os temas do vosso trabalho, no qual sois chamados a reflectir acerca da vida e da renovação da acção pastoral da Igreja na Itália. […]

2. Corroborados pelo Espírito, em continuidade com o caminho indicado pelo Concílio Vaticano II e, de maneira particular, com as orientações pastorais da década que acaba de terminar, preferistes assumir a educação como tema principal para os próximos dez anos. Tal horizonte temporal está proporcionado à radicalidade e à vastidão da exigência educativa. E parece-me necessário ir até às profundas raízes desta emergência para encontrar também as respostas adequadas a este desafio. Vejo sobretudo duas.

Uma raiz essencial consiste – parece-me – num falso conceito de autonomia do homem: o homem deveria desenvolver-se unicamente por si mesmo, sem imposições da parte de terceiros, os quais poderiam contribuir para o seu autodesenvolvimento, mas sem entrar neste desenvolvimento. Na realidade, para a pessoa humana é essencial o facto de que só se torna ela mesma a partir do outro, o “eu” só se torna ele próprio a partir do “tu” e do “vós”, é criado para o diálogo, para a comunhão sincrónica e diacrónica. E só o encontro com o “tu” e com o “nós” abre o “eu” a si mesmo. Por isso, a chamada educação antiautoritária não é educação, mas sim renúncia à educação: assim, não se compreende em que medida devemos dar aos outros, ou seja o “tu” e o “nós” em que o “eu” se abre a si mesmo. Por conseguinte, um primeiro ponto parece-me este: superar esta falsa ideia de autonomia do homem, como um “eu” completo em si próprio, enquanto se torna “eu” também no encontro colectivo com o “tu” e com o “nós”.

3. Vejo a outra raiz da emergência educativa no cepticismo e no relativismo ou, com palavras mais simples e claras, na exclusão das duas fontes que orientam o caminho humano. A primeira fonte deveria ser a natureza segundo a Revelação.

No entanto, hoje a natureza é considerada algo puramente mecânico, que não contém em si qualquer imperativo moral, nem uma orientação como valor: algo puramente mecânico e, portanto, do próprio ser não promana qualquer orientação. A Revelação é considerada como um momento do desenvolvimento histórico, portanto relativo como todo o desenvolvimento histórico e cultural, ou – afirma-se – talvez haja a Revelação, mas não compreende conteúdos, apenas motivações. E se estas duas fontes, a natureza e a Revelação, se calarem, também a terceira fonte, a história, deixará de falar, porque inclusive a história se tornará apenas um aglomerado de decisões culturais, ocasionais e arbitrárias, que não valem para o presente e para o futuro.

Por conseguinte, é fundamental voltar a encontrar um conceito verdadeiro da natureza, como criação de Deus que nos fala; através do livro da criação, o Criador fala-nos e indica-nos os valores autênticos. E depois, assim, encontrar de novo também a Revelação: reconhecer que o livro da criação, no qual Deus nos dá as orientações fundamentais, é decifrado na Revelação, é aplicado e feito próprio na história cultural e religiosa, não sem erros, mas de uma maneira substancialmente válida, a desenvolver e purificar sempre de novo.

Deste modo, em tal “concerto” – por assim dizer – entre criação decifrada na Revelação, concretizada na história cultural que sempre progride e na qual nós encontramos cada vez mais a linguagem de Deus, apresentam-se também as indicações para uma educação que não é imposição, mas realmente abertura do “eu” ao “tu”, ao “nós” e ao “Tu” de Deus.

4. Portanto, as dificuldades são enormes: encontrar as fontes, a linguagem das fontes mas, embora conscientes do peso destas di f iculdades, não podemos ceder à desconfiança nem à resignação. Educar nunca foi fácil, mas não devemos render-nos: não cumpriríamos o mandato que o próprio Senhor nos confiou, chamando-nos a apascentar o seu rebanho com amor. Pelo contrário, despertemos nas nossas comunidades aquela paixão educativa, que é uma paixão do “eu” pelo “tu”, pelo “nós”, por Deus, e que não se resolve numa didáctica, num conjunto de técnicas e nem sequer na transmissão de princípios áridos.

Educar é formar as novas gerações, para que saibam entrar em relacionamento com o mundo, fortalecidos por uma memória significativa que não é apenas ocasional, mas corroborada pela linguagem de Deus, que encontramos na natureza e na Revelação, de um património interior compartilhado, da verdadeira sabedoria que, enquanto reconhece o fim transcendente da vida, orienta o pensamento, os afectos e o juízo.

5. Os jovens têm sede no seu coração, e esta sede é uma exigência de significado e de relacionamentos humanos autênticos, que ajudem a não se sentir abandonados perante os desafios da vida. Trata-se do desejo de um futuro, tornado menos incerto por uma companhia segura e confiável, que se aproxima de cada um com delicadeza e respeito, propondo valores sólidos a partir dos quais crescer rumo a metas elevadas, mas alcançáveis. A nossa resposta é o anúncio do Deus amigo do homem, que em Jesus se fez próximo de cada um.

A transmissão da fé faz parte irrenunciável da formação integral da pessoa, porque em Jesus Cristo se realiza o programa de uma vida bem sucedida: como ensina o Concílio Vaticano II, “Aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se também ele mais homem” (Gaudium et spes, 41). O encontro pessoal com Jesus é a chave para intuir a relevância de Deus na existência quotidiana, o segredo para a viver na caridade fraterna, que é a condição para se erguer sempre das quedas e para caminhar rumo à conversão constante.

6. A tarefa educativa, que assumistes como prioritária, valoriza sinais e tradições, das quais a Itália é muito rica. Ela tem necessidade de lugares credíveis: em primeiro lugar a família, com o seu papel peculiar e irrenunciável; a escola, horizonte comum para além das opções ideológicas; a paróquia, “chafariz da aldeia”, lugar e experiência que introduz a fé no tecido dos relacionamentos quotidianos.

Em cada um destes âmbitos, permanece decisiva a qualidade do testemunho, caminho privilegiado da missão eclesial. Com efeito, o acolhimento da proposta cristã passa através dos relacionamentos de proximidade, lealdade e confiança. Numa época em que a grande tradição do passado corre o risco de permanecer letra morta, somos chamados a aproximar-nos de cada um com disponibilidade sempre nova, acompanhandoo ao longo do caminho de descoberta e assimilação pessoal da verdade. E agindo assim, também nós podemos redescobrir de modo novo as realidades fundamentais.

7. A vontade de promover uma renovada estação de evangelização não esconde as feridas que têm marcado a comunidade eclesial, devido à debilidade e ao pecado de alguns dos seus membros. Porém, esta admissão humilde e dolorosa não deve fazer esquecer o serviço gratuito e apaixonado de numerosos fiéis, a começar pelos sacerdotes. O ano especial que lhes foi dedicado quis constituir uma oportunidade para promover a sua renovação interior, como condição para um compromisso evangélico e ministerial mais incisivo.

Ao mesmo tempo, ajuda-nos também a reconhecer o testemunho de santidade de quantos – a exemplo do Cura d’Ars – se prodigalizam sem reservas para educar na esperança, na fé e na caridade. Nesta luz, aquilo que é motivo de escândalo deve traduzir-se para nós em exortação a uma “profunda necessidade de reaprender a penitência, de aceitar a purificação e de aprender por um lado o perdão, mas também a necessidade da justiça” (Bento XVI, Entrevista aos jornalistas durante o voo rumo a Portugal, 11 de Maio de 2010).

8. Caros Irmãos, encorajo-vos a percorrer sem hesitações o caminho do compromisso educativo. O Espírito Santo vos ajude a nunca perder a confiança nos jovens, vos incentive a ir ao seu encontro, vos leve a frequentar os seus ambientes de vida, inclusive aquele constituído pelas novas tecnologias de comunicação, que já permeiam a cultura em todas as suas expressões. Não se trata de adaptar o Evangelho ao mundo, mas de haurir do Evangelho aquela novidade perene, que permite encontrar em todas as épocas as formas adequadas para anunciar a Palavra que não passa, fecundando e servindo a existência humana. Por conseguinte, voltemos a propor aos jovens a medida alta e transcendente da vida, entendida como vocação: chamados à vida consagrada, ao sacerdócio e ao matrimónio, que eles saibam responder com generosidade ao apelo do Senhor, porque somente assim poderão compreender aquilo que é essencial para cada um. A fronteira educativa constitui o lugar para uma ampla convergência de intenções: efectivamente, a formação das novas gerações não pode deixar de estar a peito de todos os homens de boa vontade, interpelando a capacidade da sociedade inteira de assegurar referências confiáveis para o desenvolvimento harmonioso das pessoas.
9. […]

10. Chamado pela graça a ser Pastor da Igreja Universal e da esplêndida Cidade de Roma, trago constantemente comigo as vossas preocupações e as vossas expectativas, que nos dias passados depositei – com aquelas da humanidade inteira – aos pés de Nossa Senhora de Fátima. Dirijamos-lhe a nossa oração: “Virgem Mãe de Deus e nossa caríssima Mãe, que a vossa presença faça reflorescer o deserto das nossas solidões e brilhar o sol sobre as nossas trevas, faça voltar a calma depois da tempestade, para que todo o homem veja a salvação do Senhor, que tem o nome e o rosto de Jesus, reflectida nos nossos corações, para sempre unidos ao vosso. Assim seja!” (Fátima, 12 de Maio de 2010).
Agradeço-vos e abençoo-vos do coração.

Sacerdotes, Ministros de Cristo

Sacerdotes, “Ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1).

Excertos da primeira meditação do Advento deste ano litúrgico, que o Padre Raniero Cantalamessa, OFM Cap., pronunciou na presença de Bento XVI.

1. A fonte de todo o sacerdócio

A palavra da Escritura que servirá de fio condutor [a esta meditação] é da Primeira Carta de S. Paulo aos Coríntios […], “que as pessoas nos considerem como ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1). A esta ideia podemos ligar, em alguns aspectos, a definição da Carta aos Hebreus: “Cada sumo sacerdote, escolhido entre os homens, é constituído para o bem dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus” (Heb 5, 1). […] Neste Advento, tomaremos em consideração apenas a primeira frase do Apóstolo: “Servos de Cristo”. Se Deus quiser, prosseguiremos a nossa reflexão na Quaresma, meditando sobre o que signi f ica para um sacerdote ser “administrador dos mistérios de Deus” e quais são os mistérios que deve administrar.

“Servos de Cristo!” (com ponto de exclamação, para indicar a grandeza, a dignidade e a beleza desse título): eis a palavra que deve tocar os nossos corações, nesta meditação, e fazê-lo vibrar com santo orgulho. Não estamos falando dos serviços práticos ou ministeriais, como administrar a Palavra e os Sacramentos (disso, como referi, falaremos na Quaresma); por outras palavras, não falamos do serviço como acto, mas do serviço como estado, como vocação fundamental e como identidade do sacerdote. E falamos sobre isso na mesma direcção e com o mesmo espírito de Paulo, que no início das suas cartas se apresenta como: “Paulo, servo de Jesus Cristo, apóstolo por vocação”.

No passaporte invisível do sacerdote, aquele com o qual ele se apresenta cada dia diante de Deus e do seu povo, deverse- ia poder ler o seguinte, no campo destinado a escrever a profissão: “Servo de Jesus Cristo”. Todos os cristãos são naturalmente servos de Cristo, mas o sacerdote é-o a título e modo muito particular; como todos os baptizados são sacerdotes, mas o ministro ordenado é-o a título e modo diverso e superior.

2. Continuadores da obra de Cristo

O serviço essencial que o sacerdote é chamado a oferecer a Cristo é continuar a sua obra no mundo: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20, 21). O Papa São Clemente, na sua famosa carta aos Coríntios, diz: “Cristo é enviado por Deus e os Apóstolos são enviados por Cristo… Eles, pregando por toda a parte, nos campos e nas cidades, nomearam os seus primeiros sucessores, estando à prova do Espírito, para ser bispos e diáconos”. Cristo foi enviado pelo Pai; os apóstolos, foram enviados por Cristo; os bispos, pelos apóstolos: esta é a primeira enunciação clara do princípio da sucessão apostólica.

Mas a palavra de Jesus não tem só um significado jurídico e formal. Isto é: não funda apenas o direito dos ministros ordenados a falar como “enviados” de Cristo; também indica o motivo e o conteúdo deste mandato, que é o mesmo pelo qual o Pai enviou o Filho ao mundo. E porque é que Deus enviou o seu Filho ao mundo? Aqui também renunciamos a uma resposta global, completa, para o qual deveríamos ler todo o Evangelho; apenas algumas declarações programáticas de Jesus.

Diante de Pilatos, Ele declarou solenemente: “Para isso vim ao mundo, para dar testemunho da verdade” (Jo 18, 37). Continuar a obra de Cristo comporta, para o sacerdote, dar testemunho da verdade, fazer brilhar a luz da verdade.

Só temos de ter em conta o duplo sentido da palavra verdade, aletheia, em S. João. Oscila entre a realidade divina e o conhecimento da realidade divina, entre um significado ontológico, ou objectivo, e um significado gnoseológico, ou subjectivo. A verdade é “a realidade eterna enquanto revelada aos homens, referente tanto à própria realidade como à sua revelação” [H. Dodd, L’interpretazione del Quarto Vangelo, Paideia, Brescia 1974, p. 227].

A interpretação tradicional tem assinalado a “verdade” especialmente no sentido de revelação e conhecimento da verdade; por outras palavras, como verdade dogmática. Esta tarefa é, sem dúvida, essencial. A Igreja, como um todo, aborda-a através do magistério, dos concílios, dos teólogos e do sacerdote individualmente, pregando ao povo a “sã doutrina”. Mas não devemos esquecer o outro significado joanino de verdade: o da realidade conhecida, mais do que conhecimento da realidade. A esta luz, a tarefa da Igreja e do sacerdote individual não se limita a proclamar as verdades da fé, mas deve ajudar a fazer a experiência, de entrar em contacto íntimo e pessoal com a realidade de Deus, através do Espírito Santo.

“A fé — escreve São Tomas de Aquino — não termina no enunciado, mas na coisa” (Fides non terminatur ad enuntiabile sed ad rem). Da mesma forma, os mestres da fé não podem contentar-se com ensinar as verdades de fé; devem ajudar as pessoas a atingir a “coisa”: não apenas ter uma ideia de Deus, mas fazer a experiência d’Ele, segundo o sentido bíblico de conhecer, que é diferente, como se sabe, do sentido grego e filosófico. […]

3. Continuadores, não sucessores

Mas em que sentido podemos falar dos sacerdotes como continuadores da obra de Cristo? Em cada instituição humana, como era então o Império Romano e como são hoje as ordens religiosas e todas as empresas humanas, os sucessores continuam a obra, mas não a pessoa do fundador. Este, em ocasiões, é corrigido, superado e inclusive repudiado. Isso não acontece com a Igreja. Jesus não tem sucessores, pois não morreu; está vivo, “ressuscitado da morte, a morte já não tem poder sobre Ele”. Qual é então a tarefa dos seus ministros? A de representá-lo, quer dizer, fazê-lo presente, dar forma visível à sua presença invisível. Nisso consiste a dimensão profética do sacerdócio. […]

São Gregório de Nissa lançou uma famosa expressão, que normalmente se aplica à experiência dos místicos: “Sentimento de presença” (Gregorio Nisseno, Sul Cantico, XI, 5, 2 – p. 44, 1001– aisthesis parousias).

O sentimento de presença é algo mais que a simples fé na presença de Cristo; é ter o sentimento vivo, a percepção quase física da sua presença como Ressuscitado. Se isso é próprio da mística, então quer dizer que todo o sacerdote tem de ser um místico, ou pelo menos um “mistagogo”, aquele que introduz as pessoas no mistério de Deus e de Cristo, levando-as pela mão.

A tarefa do sacerdote não é diferente, ainda que esteja subordinada à que o Santo Padre apresentava como prioridade absoluta do sucessor de Pedro e de toda Igreja, na carta dirigida aos bispos, a 10 de Março passado: “No nosso tempo em que a fé, em vastas zonas da terra, corre o perigo de apagar-se como uma chama que já não recebe alimento, a prioridade que está acima de todas é tornar Deus presente neste mundo e abrir aos homens o acesso a Deus. Não a um deus qualquer, mas àquele Deus que falou no Sinai; àquele Deus cujo rosto reconhecemos no amor levado até ao extremo (cf. Jo 13, 1) em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado… Conduzir os homens para Deus, para o Deus que fala na Bíblia: tal é a prioridade suprema e fundamental da Igreja e do Sucessor de Pedro neste tempo”.

4. Servos e amigos

Mas agora temos de dar um passo adiante na nossa reflexão. “Servos de Jesus Cristo”: este título nunca deveria ir sozinho; deve-se acompanhar sempre, ao menos no profundo do coração, de outro título: o de amigos! […]

Nos discursos de adeus, Jesus dá um passo adiante, completando o título de companheiros com o de amigos: “Não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu amo faz; chamo-vos amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai, vos dei a conhecer” (João 15, 15).

Há algo comovedor nesta declaração de amor de Jesus. Sempre recordarei o momento em que recebi a graça, por um instante, de experimentar algo desta comoção. Num encontro de oração, alguém abriu a Bíblia e leu esta passagem de João. A palavra “amigos” tocou-me com uma profundidade nunca antes experimentada; removeu algo no fundo do meu ser, até ao ponto de, durante o resto do dia, repetir para mim mesmo, cheio de maravilha e incredulidade: “Chamou-me de amigo! Jesus de Nazaré, o Senhor, meu Deus! Sou seu amigo!” E parecia-me que com essa certeza era possível voar pelos ares e atravessar o fogo.

Quando fala do amor de Jesus Cristo, São Paulo sempre dá a impressão de que se comove: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (Romanos 8, 35); “amou-me e entregou-se por mim!” (Gálatas 2, 20). Tendemos a desconfiar da comoção e inclusive envergonhamo-nos dela. Não sabemos a riqueza que perdemos. Jesus “comoveu-se profundamente”; chorou ante a viúva de Naim (cf Lucas 7, 13) e ante as irmãs de Lázaro (cf João 11, 33-35). Um sacerdote capaz de comoverse quando fala do amor de Deus e do sofrimento de Cristo, ou quando recebe a confidência de uma grande dor, convence mais do que com agudas racionalizações. Comover-se não significa necessariamente começar a chorar; é algo que se percebe nos olhos, na voz. A Bíblia está cheia do pathos de Deus.

5. A alma de todo o sacerdócio

Uma relação pessoal, cheia de confiança e de amizade com a pessoa de Jesus, é a alma de todo o sacerdócio. Neste Ano Sacerdotal, voltei a ler o livro do Abade Jean-Baptiste Chautard, A alma de todo o apostolado, que tão bem fez e tantas consciências sacudiu nos anos anteriores ao Concílio. Numa altura em que se tinha grande entusiasmo pelas “obras paroquiais” — cinema, jogos, iniciativas sociais, círculos culturais —, o Autor voltava a centrar a atenção sobre o problema da alma do sacerdócio, denunciando o perigo de um activismo vazio. E escrevia: “Deus quer que Jesus seja a vida das obras”.

Ele não reduzia a importância das actividades pastorais; no entanto, afirmava que, sem uma vida de união com Cristo, elas não eram mais do que “muletas” ou, como as definia S. Bernardo, “malditas ocupações”. Jesus disse a Pedro: “Simão, tu amas-me? Apascenta as minhas ovelhas”. A acção pastoral de todo o ministro da Igreja, desde o Papa até o último sacerdote, não é mais do que a expressão concreta do amor por Cristo. “Tu amas-me? Então apascenta”. O amor por Jesus marca a diferença entre o sacerdote funcionário, ou o sacerdote executivo, e o sacerdote servo de Cristo e dispensador dos mistérios de Deus.

O livro do Abade Chautard poderia ter o título A alma de todo o sacerdócio, pois toda a obra fala d’Ele, como agente e responsável em primeira linha da pastoral da Igreja. Naquela época, o perigo ante o qual se tentava reagir era o chamado “americanismo”. De facto, o Abade referese com frequência à carta de Leão XIII, Testem benevolentiae, que tinha condenado essa “heresia”. Hoje, esta heresia — se de heresia se pode falar — já não é só “americana”; é uma ameaça que, inclusive por causa da diminuição do número de sacerdotes, afecta o clero de toda a Igreja: o activismo frenético. Por outro lado, muitas das instâncias que procediam naquele tempo dos cristãos dos Estados Unidos, e em particular do movimento criado pelo servo de Deus Isaac Hecker, fundador dos Paulist Fathers, tachadas de “americanismo” — por exemplo, a liberdade de consciência e a necessidade de um diálogo com o mundo moderno —, não eram heresias, mas instâncias proféticas que o Concílio Vaticano II fará em parte suas.

O primeiro passo para fazer de Jesus a alma do próprio sacerdócio consiste em passar da personagem de Jesus à Pessoa de Jesus. A personagem é alguém “de” quem se pode falar com alegria, mas “a” quem ninguém se pode dirigir e “com” quem ninguém pode falar. Pode-se falar de Alexandre Magno, de Júlio César, de Napoleão, tudo o que se quiser; mas se alguém dissesse que fala com algum deles, seria logo reenviado para o psiquiatra. A pessoa, pelo contrário, é alguém com quem se pode falar e a quem se pode escutar. Quando Jesus não é mais que um conjunto de notícias, de dogmas ou de heresias, alguém do passado, uma memória, não uma presença, fica-se apenas com uma personagem. É necessário convencer-se de que Ele está vivo e presente. É mais importante falar com Ele do que falar d’Ele.

Um dos aspectos mais bonitos da figura de Dom Camilo, de Giovanni Guareschi, tendo obviamente em conta o género literário, aprecia-se quando fala em voz alta com o Crucificado, sobre tudo o que lhe sucede na paróquia. Se nos acostumássemos a fazer isso, com tanta espontaneidade, com palavras nossas, quanto mudaria na nossa vida sacerdotal! Dar-nos-íamos conta de que não falamos no vazio, mas a alguém que está presente, que escuta e responde, talvez não em voz alta como a Dom Camilo.

6. Em primeiro lugar, as “pedras grandes”

Assim como, em Deus, toda a obra exterior da criação emana da sua vida íntima, “do incessante fluxo de seu amor”, e assim como toda actividade de Cristo emana de seu diálogo ininterrupto com o Pai, do mesmo modo todas as obras do sacerdote devem ser prolongamento da sua união com Cristo. As palavras de Cristo: “Assim como o Pai Me enviou, assim Eu vos envio a vós”, também significam isto: “Assim como Eu vim ao mundo sem me separar de meu Pai, assim vós deveis ir para o mundo sem vos separardes de Mim”.

Quando se interrompe este contacto, acontece como quando acaba a energia numa casa e tudo pára e fica às escuras. Às vezes, ouve-se esta pergunta: como podemos ficar tranquilos, rezando, quando tantos necessitados reclamam a nossa presença? Como é possível não correr quando a casa está a arder? Devese responder: sim, é verdade, mas imaginemos o que aconteceria a uma equipa de bombeiros se fosse com as sirenes ligadas, apagar um incêndio, e ao chegar se desse conta de que não levava uma gota de água. É o que acontece quando corremos a pregar, ou a exercer outros ministérios, vazios de oração e do Espírito Santo.

Li uma história que me parece aplicar-se de maneira exemplar aos sacerdotes. Um dia, um velho professor foi convidado, como especialista, para falar sobre o planeamento mais eficaz aos executivos de grandes companhias norte-americanas. Decidiu fazer uma experiência. De pé, tirou de sob a mesa um grande jarro de vidro vazio. Tomou depois uma dezena de pedras do tamanho de bolas de ténis, que depositou com cuidado, uma por uma, no jarro até preenchê-lo. Quando já não havia espaço para outras pedras, perguntou aos alunos: “Acreditam que este jarro está cheio?” Todos disseram que sim.

Agachou-se de novo e pegou numa caixa cheia de pequenas pedras que despejou no jarro. Depois, perguntou: “Agora está cheio?” Com mais prudência, os alunos responderam: “talvez ainda não”. Então ele agarrou num saco de areia que verteu no jarro. “E agora?”, interrogou. Eles responderam de imediato: “não”. Então o velho professor pegou numa garrafa de água e verteu até encher o jarro.

“Qual é a grande verdade que nos mostra esta experiência?”, perguntou. O mais atrevido respondeu: “Demonstra que, ainda que a nossa agenda esteja totalmente cheia, com alguma boa vontade sempre se pode acrescentar um compromisso, algo mais para fazer”. “Não”, disse o professor. “O que a experiência demonstra é que, se não se colocam no jarro em primeiro lugar as peças grandes, elas depois já não podem entrar”. “Quais são as peças grandes, as prioridades da nossa vida? O importante é pôr as peças grandes em primeiro lugar”, na nossa agenda.

Ora, S. Pedro indicou, de uma vez por todas, quais são as grandes peças, as prioridades absolutas dos apóstolos e dos seus sucessores, bispos e sacerdotes: “nós dedicar-nos-emos à oração e ao ministério da Palavra” (Act 6, 4). Nós, sacerdotes, mais do que quaisquer outros, estamos expostos ao perigo de sacrificar o mais importante pelo urgente. A oração, a preparação da homilia ou da missa, o estudo e a formação são coisas muito importantes, mas não são urgentes; se forem interrompidas ou suspensas, aparentemente não acaba o mundo. Por outro lado, há muitas coisas pequenas – um encontro, um telefonema, um pequeno trabalho material – que são urgentes. Deste modo, acaba-se suspendendo sistematicamente aquilo que é importante, remetendo-o para um “depois” que nunca mais chega.

Para um sacerdote, pôr em primeiro lugar, no jarro que é a sua agenda, as grandes peças, pode significar concretamente começar o dia com um tempo de oração e de diálogo com Deus, de maneira que as demais actividades e diferentes compromissos não acabem por ocupar todo o espaço.

Concluo com uma oração do Abade Chautard, que se encontra no programa destas meditações:
“Oh Deus, dai à Igreja muitos apóstolos; mas suscitai no seu coração uma sede ardente de intimidade convosco e, ao mesmo tempo, um desejo de trabalhar pelo bem do próximo. Dai a todos uma actividade contemplativa e uma contemplação activa”. Assim seja.

 

Pe. Raniero Cantalamessa
(Pregador da Casa Pontifícia)

Sacerdotes, Ministros da Nova Aliança do Espírito

Excertos da 2ª meditação de Advento do Padre Cantalamessa a Bento XVI e seus colaboradores da Cúria Romana, na capela “Redemptoris Mater”, no Vaticano.

1. Ao serviço do Espírito 

Na pregação passada, comentámos a definição que Paulo dá dos sacerdotes, como “servos de Cristo”. Na Segunda Carta aos Coríntios, encontra-se uma afirmação aparentemente diferente. Ele escreve: “que nos tornou capazes de exercer o ministério da aliança nova, não da letra, mas do Espírito. A letra mata, o Espírito é que dá a vida. Se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, foi cercado de tanta glória que os israelitas não podiam fitar o rosto de Moisés por causa do seu fulgor, ainda que passageiro, quanto mais glorioso não será o ministério do Espírito?” (2 Cor 3, 6-8).

Paulo define-se a si mesmo e aos seus colaboradores como “ministros do Espírito”; e define o ministério apostólico como um “serviço do Espírito”. A comparação com Moisés e com o culto da Antiga Aliança não deixa nenhuma dúvida de que, nesta passagem como em muitas outras dessa mesma carta, ele fala do papel dos guias da comunidade cristã, ou seja, dos apóstolos e seus colaboradores.

Quem conhece a relação que, para Paulo, existe entre Cristo e o Espírito, sabe que não há contradição entre ser servo de Cristo e ministro do Espírito; mas há, isso sim, uma perfeita continuidade. O Espírito de que se fala aqui é de facto o Espírito de Cristo. O próprio Jesus explica o papel do Paráclito, a respeito dele mesmo, quando diz aos apóstolos: Ele tomará do que é meu e vo-lo anunciará, ele vos fará recordar aquilo que eu disse, ele dará testemunho de mim (cfr. Jo 16, 13-15).

A definição completa do ministério apostólico e sacerdotal é: servos de Cristo no Espírito Santo. O Espírito indica a qualidade ou a natureza do nosso serviço, que é um serviço “espiritual”, no sentido forte do termo; não só no sentido de que ele se relaciona com o espírito do homem e a sua alma, mas no sentido de que tem por sujeito, ou “agente principal”, como dizia Paulo VI, o Espírito Santo. Santo Irineu diz que o Espírito Santo é “a nossa própria comunhão com Cristo”.

Logo acima, na mesma Segunda Carta aos Coríntios, o apóstolo havia ilustrado a acção do Espírito Santo nos ministros da nova aliança com o símbolo da unção: “É Deus que nos confirma, a nós e a vós, na nossa adesão a Cristo, como também é Deus que nos ungiu. Foi ele que imprimiu em nós a sua marca e nos deu como garantia o Espírito derramado nos nossos corações” (2 Cor 1, 21 s.).

Santo Atanásio comenta sobre este texto: “o Espírito é chamado para ungir e selar… A unção é o sopro do Filho para que todo aquele que possui o Espírito possa dizer: “nós somos o perfume de Cristo”. O selo é o Cristo, de modo que aquele que é marcado pelo selo possa assumir a forma de Cristo”. Quanto à unção, o Espírito Santo transmite-nos o perfume de Cristo; quanto ao selo, a sua forma ou imagem. Portanto, não há dicotomia entre o serviço de Cristo e o serviço do Espírito, mas unidade profunda.

Todos os cristãos são “ungidos”; o seu próprio nome não significa outra coisa do que isto: “ungidos”, à semelhança de Cristo, que é o Ungido por excelência (cf. 1 Jo 2, 20. 27). Mas Paulo está falando aqui da obra que é sua e de Timóteo (“nós”), no confronto da comunidade (“vós”); é evidente por isso que se refere em particular à unção e ao selo do Espírito recebidos no momento da consagração ao ministério apostólico por Timóteo, mediante a imposição das mãos do Apóstolo (cf. 2 Tim 1, 6).

Temos de redescobrir a importância da unção do Espírito, porque creio que nela está contido o segredo da eficácia do ministério episcopal e presbiteral. Os sacerdotes são essencialmente consagrados, isto é, ungidos. “Nosso Senhor Jesus – lê-se na Presbyterorum ordinis – que o Pai santificou e enviou ao mundo (Jo 10, 36), tornou todo o seu Corpo místico participante da unção do Espírito, com que Ele mesmo tinha sido ungido”. O mesmo decreto conciliar lança luz sobre a especificidade da unção conferida pelo sacramento da Ordem. Por isso, diz, “os presbíteros ficam assinalados com um carácter particular e, dessa maneira, configurados a Cristo sacerdote, de tal modo que possam agir em nome de Cristo cabeça”. […]

4. Como obter a unção do Espírito 

Apliquemos à vida do sacerdote este rico conteúdo bíblico e teológico relacionado com o tema da unção. São Basílio diz que o Espírito Santo “estava sempre presente na vida do Senhor, tornando-se a unção e o companheiro inseparável”, de modo que “toda a actividade de Cristo envolve-se no Espírito”. Receber a unção significa, portanto, receber o Espírito Santo como “companheiro inseparável” na vida, fazer tudo “no Espírito”, na sua presença, sob a sua guia. Isso implica uma certa passividade, docilidade, ou como diz Paulo, um “deixar -se guiar pel o Espírito” (Gl 5, 18).

Tudo isso se traduz, externamente, ora em suavidade, calma, paz, doçura, devoção, comoção, ora em autoridade, força, poder, credibilidade, dependendo das circunstâncias, do carácter de cada um e também da actividade que exerce. O exemplo de vida é Jesus, que, movido pelo Espírito, se manifesta como manso e humilde de coração, mas também, quando necessário, pleno de autoridade sobrenatural. É uma condição caracterizada por um certo brilho interior, que torna fácil e credível o fazer das coisas. Um pouco de como é a “forma” para o atleta e a inspiração para o poeta: um estado em que se pode dar o melhor de si.

Nós, sacerdotes, precisamos de nos acostumar a pedir a unção do Espírito antes de desempenhar uma acção importante ao serviço do Reino: uma decisão a tomar, uma nomeação a fazer, um documento a escrever, uma comissão a presidir, uma pregação a preparar. Eu aprendi de maneira dura. Encontrei-me, por vezes, a ter de falar a um público amplo, numa língua estrangeira, muitas vezes tendo acabado de chegar de uma longa viagem. Escuridão total. A língua em que deveria falar parecia-me escapar, a incapacidade de me concentrar sobre um esquema, um tema. E a música de abertura estava prestes a terminar… Então me lembrei da unção e logo fiz uma breve oração: “Pai, em nome de Cristo, peço a unção do Espírito!”

Às vezes, o efeito é imediato. Experimenta-se quase fisicamente a unção vindo sobre si. Uma certa comoção atravessa o corpo, ilumina a mente, serenidade na alma; desaparece a fadiga, o nervosismo, cada medo e cada timidez; experimenta-se algo da própria calma e autoridade de Deus.

Muitas das minhas orações, como imagino que seja com todos os cristãos, não foram escutadas; no entanto, quase nunca fica sem ser escutada esta oração pela unção. Parece que, diante de Deus, temos uma espécie de direito de reclamála. Em certa altura, especulei um pouco sobre essa possibilidade. Por exemplo, se devo falar de Jesus Cristo, faço uma aliança secreta com Deus Pai, sem fazer Jesus saber, e digo: “Pai, devo falar de teu Filho Jesus, que tanto amas: dá-me a unção de Seu Espírito para alcançar o coração das pessoas.” Se eu tiver que falar de Deus Pai, faço então o oposto: um acordo secreto com Jesus… A doutrina da Trindade é maravilhosa também para isto.

2. A Unção: figura, acontecimento e sacramento

A unção, como a Eucaristia e a Páscoa, é uma daquelas realidades que se fazem presentes em todas as fases da história da salvação. De facto, está presente no Antigo Testamento como figura, no Novo Testamento como acontecimento e no tempo da Igreja como sacramento. No nosso caso, a figura advém das várias unções praticadas no Antigo Testamento; o acontecimento é constituído pela unção de Cristo, o Messias, o Ungido, a quem todas as figuras tendiam como que ao seu cumprimento; o sacramento é representado por aquele conjunto de sinais sacramentais que provêm da unção como rito principal ou complementar.

No Antigo Testamento fala-se em três tipos de unção: a unção real, a sacerdotal e a profética, isto é, a unção dos reis, a dos sacerdotes e a dos profetas, ainda que no caso dos profetas se trate de uma unção espiritual ou metafórica, sem a presença de um óleo material. Em cada uma destas três unções, é delineado um horizonte messiânico, ou seja, a expectativa de um rei, um sacerdote ou um profeta, que será o Ungido por antonomásia, o Messias.

Juntamente com a investidura oficial e jurídica, pela qual o rei se converte no Ungido do Senhor, a unção confere também, segundo a Bíblia, um poder interior, comporta uma transformação que vem de Deus, e este poder, esta realidade, vêm cada vez mais identificados com o Espírito Santo. Ao ungir a Saul como rei, Samuel disse: “Não é o Senhor quem te ungiu como chefe de seu povo Israel? Tu governarás o povo do Senhor… invadir-te-á então o Espírito do Senhor, entrarás em transe e ficarás mudado num outro homem” (1 Samuel 10, 1-6).

O Novo Testamento não hesita em apresentar Jesus como o Ungido de Deus, no qual todas as unções do passado encontraram o seu cumprimento. O título de Messias, Cristo, que significa justamente Ungido, é a prova mais clara disso mesmo.

O momento ou evento histórico que remete para essa conclusão é o baptismo de Jesus no Jordão. O efeito desta unção é o Espírito Santo: “Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder” (Act 10, 38); o próprio Jesus, após o seu baptismo, declarará na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois me ungiu (Lc 4, 18).

Jesus era certamente pleno do Espírito Santo desde o momento da Encarnação, mas tratava-se de uma graça pessoal, ligada à união hipostática, e portanto incomunicável. Ora, na unção baptismal, recebe aquela plenitude do Espírito Santo que, como cabeça, poderá transmitir para o corpo. A Igreja vive desta graça capital (gratia capitis). Os efeitos da tríplice unção – real, profética e sacerdotal – são grandiosos e imediatos no ministério de Jesus. Pela força da unção real, Ele abate o reino de Satanás e instaura o Reino de Deus: “se expulso, no entanto, pelo Espírito de Deus, é porque já chegou até vós o Reino de Deus” (Mt 12, 28); pela força da unção profética, “anuncia a boa nova aos pobres”; e pela força da unção sacerdotal, oferece orações e lágrimas durante a sua vida terrena e, no fim, oferece-se a si mesmo na cruz.

Após ter estado presente no Antigo Testamento como figura e no Novo Testamento como acontecimento, a unção está presente agora na Igreja como sacramento. O sacramento toma, da figura, o sinal; e do acontecimento, o significado; toma, das unções do Antigo Testamento, o elemento – o óleo, o crisma ou unguento perfumado – e, de Cristo, a eficácia salvífica. Cristo nunca foi ungido com óleo físico (à parte da unção de Betânia), nem nunca ungiu a ninguém com óleo físico. Nele, o símbolo foi substituído pela realidade, pelo “óleo da alegria” que é o Espírito Santo.

Mais que um sacramento isolado, a unção está presente na Igreja como um conjunto de ritos sacramentais. Como sacramentos em si mesmos, temos a confirmação (que através de todas as transformações sofridas remete, como o seu nome testemunha, ao rito antigo da unção com o crisma) e a unção dos enfermos; como parte de outros sacramentos, temos a unção baptismal e a unção no sacramento da Ordem. Na unção crismal que se segue ao baptismo, faz-se menção explícita à tríplice unção de Cristo: “Ele próprio vos consagra com o crisma da salvação; inseridos em Cristo sacerdote, rei e profeta, sejais sempre membro de Seu corpo para a vida eterna”.

De todas estas unções, interessa-nos neste momento a que acompanha o momento em que se confere a Ordem sagrada. No momento em que unge com o sagrado crisma as palmas de cada ordenando, ajoelhado ante si, o bispo pronuncia estas palavras: “O Senhor Jesus Cristo, que o Pai consagrou no Espírito Santo e revestiu de poder, te guarde para a santificação de seu povo e para oferecer o sacrifício”.

3. A unção espiritual 

Existe um r isco comum a todos os sacramentos: o de ficar no aspecto ritualístico e canónico da ordenação, na sua validade e legitimidade, sem dar a devida importância ao res sacramenti, ao efeito espiritual, à graça própria do sacramento, no caso, o fruto da unção na vida do sacerdote. A unção sacramental habilita-nos a cumprir certas tarefas sacras, como orientar, pregar, instruir; dá-nos, por assim dizer, a autorização para fazer certas coisas, não necessariamente a autoridade para as fazer; assegura a sucessão apostólica, mas não necessariamente o sucesso apostólico!

A unção sacramental, com o carácter indelével (o “selo”) que imprime no sacerdote, é um recurso ao qual podemos recorrer a qualquer momento, sempre que sentirmos necessidade; que podemos, por assim dizer, activar a qualquer momento do nosso ministério. Também aqui actua aquilo que a teologia chama de “revivescência” do sacramento. O sacramento, uma vez recebido no passado, reviviscit, volta a reviver e a conferir a sua graça: em casos extremos, porque remove o obstáculo do pecado (o obex); em outros casos, porque remove o verniz do costume, intensificando a fé no sacramento. É como se fosse um frasco de perfume; pode-se mantê-lo no bolso ou nas mãos indefinidamente, mas enquanto não o abrirmos, o perfume não se manifesta, é como se não estivesse lá.

Como nasceu essa ideia de uma unção actual? Um passo importante foi dado, mais uma vez, por Agostinho. Ele interpreta o texto da primeira Carta de João: “Quanto a vós, a unção que recebestes de Jesus permanece convosco…” (1 Jo 2, 27), no sentido de uma unção perene, por meio da qual o Espírito Santo, professor interior, nos permite compreender interiormente aquilo que ouvimos de fora. É-lhe atribuída a ele a expressão “unção espiritual”, spiritalis unctio, que consta no hino Veni Creator [4]. São Gregório Magno ajudou, entre muitas outras coisas, a popularizar, ao longo da Idade Média, esse ponto de vista agostiniano [5].

Uma nova fase no desenvolvimento do tema da unção se inicia com São Bernardo e São Boaventura. Com eles, define-se o novo sentido, de carácter espiritual, da unção, já não tanto relacionado com o tema do conhecimento da verdade, mas com a experiência da realidade divina. Comentando o Cântico dos Cânticos, São Bernardo diz: “um tal cântico, só a unção ensina, só a experiência nos faz compreender” [6]. São Boaventura identifica a unção com a devoção, concebida por ele como “um suave sentimento de amor a Deus despertado pela lembrança das bênçãos de Cristo” [7]. Esta não depende da natureza ou do conhecimento, nem das palavras ou dos livros, mas “do dom de Deus que é o Espírito Santo” [8].

Nos dias de hoje, são cada vez mais comuns as expressões ungido e unção (anointed, anointing) referidas à acção de uma pessoa, à qualidade de um discurso ou pregação, com um sentido diferente. Na linguagem tradicional, a palavra unção sugere, como vimos, uma ideia de suavidade e doçura, a ponto de dar lugar, no seu uso profano, a acepções pejorativas, como “untuoso”, “bajulador”, referindo uma pessoa “desagradavelmente cerimoniosa e servil”.

No seu uso moderno, mais próximo do bíblico, a palavra sugere muito mais uma ideia de poder e de força de persuasão. Um sermão carregado de unção é um sermão em que percebemos, por assim dizer, o entusiasmo provindo do Espírito; um discurso que abala, que fala ao coração das pessoas. Trata-se de um componente genuinamente bíblico do termo, presente por exemplo no texto dos Actos, onde se diz que Jesus “foi ungido com o Espírito Santo e com poder” (Act 10, 38).

A unção, nesse sentido, parece mais um acto do que um estado. É algo que a pessoa não possui de maneira constante, mas que “investe” sobre ela n o mome n t o d o exercício do ministério ou da oração. Se a unção se dá pela presença do Espírito, sendo um dom provenient e dele, o que podemos fazer para obtê-la? Antes de mais nada, orar. Há uma promessa explícita de Jesus: o Pai do céu dará o Espírito Santo aos que lho pedirem (Lc 11:13). Cumpre-nos pois, também a nós, quebrar o vaso de alabastro, como a pecadora na casa de Simão. O vaso é o nosso eu, e talvez o nosso intelectualismo árido. Quebrá-lo significa renunciar a nós mesmos, ceder a Deus as rédeas da nossa vida, com um acto explícito. Deus não pode doar o Seu Espírito a quem não se doa inteiramente a Ele.
(…)

5. Ungido para espalhar no mundo o bom odor de Cristo

No mesmo contexto de 2 Coríntios, o apóstolo, sempre referindo-se ao ministério apostólico, desenvolvendo a metáfora da unção como perfume, escreve: “Graças sejam dadas a Deus, que nos faz sempre triunfar em Cristo, e que, por meio de nós, vai espalhando por toda a parte o perfume do seu conhecimento. De facto, nós somos o bom odor de Cristo para Deus” (2 Cor 2, 14-15).

Este deve ser o sacerdote: o bom perfume de Cristo no mundo! Mas o apóstolo adverte-nos, acrescentando de imediato: “trazemos esse tesouro em vasos de barro” (2 Cor 4, 7). Sabemos muito bem, pela nossa experiência dolorosa e humilhante, o que tudo isso significa. Jesus disse aos apóstolos: “Vós sois o sal da terra. Mas, se o sal perde o seu sabor, com que se salgará? Não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e pisado pelas pessoas.” (Mt 5, 13).

A verdade desta palavra de Cristo está dolorosamente sob os nossos olhos. Se o unguento perde o odor e se gasta, transforma-se no seu contrário, em mau cheiro; e, em vez atrair a Cristo, afasta dele. Também para responder a esta situação é que o Santo Padre convocou este Ano Sacerdotal. Disse-o abertamente na carta de convocação: “há situações, nunca bastante deploradas, em que a Igreja sofre pela infidelidade de alguns dos seus ministros. Nestes casos, é o mundo que encontra motivo de escândalo e de recusa”.

A carta do Papa não se limita a esta constatação; de facto, acrescenta: “Aquilo que pode sobretudo servir à Igreja, em tais casos, não é tanto a acintosa revelação das fraquezas dos seus ministros, como sobretudo uma renovada e consoladora consciência da grandeza do dom de Deus, concretizado nas esplêndidas figuras de generosos pastores, de religiosos, inflamados de amor por Deus e pelas almas”.

A revelação das fraquezas também deve ser feita para fazer justiça às vítimas; e a Igreja reconhece-o actualmente e aplica-o da melhor forma que pode, mas deve fazer-se em outra sede e, em todo caso, não virá de lá o estímulo para uma renovação do ministério sacerdotal. Eu pensei este ciclo de meditações sobre o sacerdócio, precisamente como uma pequena contribuição na direcção desejada pelo Santo Padre. Pela minha parte, gostaria que o seráfico padre, São Francisco, falasse no meu lugar. Num momento em que a situação moral do clero era sem comparação mais triste do que a de hoje, ele escreve, no seu testamento: “O Senhor deume, e ainda me dá, tanta fé nos sacerdotes que vivem segundo a forma da santa Igreja Romana, por causa das suas ordens, que, mesmo que me perseguissem, quereria recorrer a eles. E se tivesse tanta sabedoria quanta teve Salomão, e me encontrasse com míseros sacerdotes deste mundo, não quereria pregar contra a vontade deles nas paróquias em que eles moram. E hei-de respeitar, amar e honrar, a eles e a todos os outros, como a meus senhores. Nem quero olhar para o pecado deles, porque neles reconheço o Filho de Deus e eles são os meus senhores. E procedo assim porque, do mesmo altíssimo Filho de Deus, nada enxergo corporalmente neste mundo senão o seu santíssimo corpo e sangue, que eles consagram e somente eles administram aos outros”.

No texto citado no começo, Paulo fala da “glória” dos ministros da Nova Aliança no Espírito, imensamente mais elevada que a antiga. Esta glória não procede dos homens e não pode ser destruída pelos homens. O santo Cura de Ars difundia certamente ao seu redor o bom odor de Cristo e, por este motivo, as multidões iam a Ars; mais perto de nós, o Padre Pio de Pietrelcina difundia o odor de Cristo, às vezes inclusive com um perfume físico, como testemunham inúmeras pessoas dignas de fé. Muitos sacerdotes, ignorados pelo mundo, são, no seu ambiente, o bom odor de Cristo e do Evangelho. O “padre rural” de Bernanos tem muitos companheiros espalhados pelo mundo, na cidade e no campo.

O Pe. Lacordaire traçou um perfil do sacerdote católico, que hoje em dia pode parecer muito optimista e idealizado, mas voltar a encontrar o ideal e o entusiasmo pelo ministério sacerdotal é precisamente o que está faltando neste momento; e, por esta razão, é o que repetimos, ao concluir esta meditação: “Viver no meio do mundo sem nenhum desejo pelos seus prazeres; ser membro de todas as famílias, sem pertencer a nenhuma delas; compartilhar todo o sofrimento; ficar à margem de todo o segredo; curar toda a ferida; elevar-se, todos os dias, dos homens a Deus, para lhe oferecer a sua devoção e a sua oração, e voltar de Deus aos homens, para lhes trazer o seu perdão e a sua esperança; ter um coração de aço para a castidade e um coração de carne para a caridade; ensinar e perdoar, consolar e abençoar e ser abençoado para sempre. Ó Deus, que tipo de vida é esta? É a tua vida, ó sacerdote de Jesus Cristo! [10]

Notas [no original italiano]
1 S. Ireneo, Adv. Haer. III, 24, 1.
2 S. Atanasio, Lettere a Serapione, III, 3 (PG 26, 628 s.).
3 PO, 1,2.
4 S. Agostino, Sulla prima lettera di Giovanni, 3,5 (PL 35, 2000); cf. 3, 12 (PL 35, 2004).
5 Cf. S. Agostino, Sulla prima lettera di Giovanni, 3,13 (PL 35, 2004 s.); cf. S. Gregorio Magno, Omelie sui Vangeli 30, 3 (PL 76, 1222).
6 S. Bernardo, Sul Cantico, I, 6, 11 (ed. Cistercense, I, Roma 1957, p.7).
7 S. Bonaventura, IV, d.23,a.1,q.1 (ed. Quaracchi, IV, p.589); Sermone III su S. Maria Maddalena (ed. Quaracchi, IX, p. 561).
8 Ibidem, VII, 5.
9 S. Basilio, Sullo Spirito Santo, XVI, 39 (PG 32, 140C).
10 H. Lacordaire, cit. da D.Rice, Shattered Vows, The Blackstaff Press, Belfast 1990, p.137.

Pe. Raniero Cantalamessa
(Pregador da Casa Pontifícia)

Congresso sobre o Sacerdócio: «À escuta da Palavra»

Texto das Conclusões do Congresso Internacional sobre o Presbítero: «À escuta da Palavra».

Notas Prévias

A. O primeiro Congresso sobre o Sacerdócio do século XX, em Portugal, foi realizado em Braga, em 25 de Outubro de 1905. O primeiro do século XXI, sendo de cariz internacional, também foi realizado em Braga, de 12 a 15 de Janeiro de 2010, comemorando 450 anos da fundação do Colégio de S. Paulo, actual edifício do Seminário Conciliar.

B. Os congressistas tiveram uma singular oportunidade de, em conjunto, rezar, cantar, reflectir, dialogar, tomar refeições em comum, conviver, presenciar e participar em manifestações artísticas, mormente de índole musical, poética e teatral.

C. Atentos ao acontecimento do ter ramoto ocor r ido no Hai t i , os congressistas manifestaram a sua profunda vizinhança e comunhão com os sobreviventes e imploraram a Deus o repouso eterno para os numerosos falecidos.

D. O número de participantes superou as três centenas de presbíteros, vindo alguns de outras dioceses. Inscreveramse também umas três dezenas de leigos.

E. A cobertura dos meios de comunicação foi bastante ampla, tendo-se utilizado, com proveito e eficiência, as novas tecnologias de comunicação.

F. O texto de Heb 2,17 foi a fonte de enraizamento bíblico que inspirou a multiplicidade de comunicações e testemunhos:

«Deve em tudo aos seus irmãos ser semelhante, a fim de misericordioso se tornar e fidedigno Sumo Sacerdote nas coisas para com Deus para propiciar os pecados do povo».

Realçamos, pois, as seguintes conclusões:

1. O presbítero dos nossos dias encara as transformações do mundo e seus reflexos na Igreja como soberana oportunidade para se dar conta de que o seu ministério é fundado sacramentalmente: compete-lhe manifestar claramente aos olhos dos outros fiéis que só um é Senhor da Igreja, só um a orienta e apenas um possui nela a Palavra – Jesus Cristo.

2. No ministério eclesial, não se coloca uma autoridade humana no lugar de Cristo, mas é Ele mesmo tornado presente sacramentalmente, um sinal eficaz que para Ele aponta e no qual Ele próprio garante agir.

3. O presbítero encaminha, pela palavra, sacramentos e prática da sua vida, os outros fiéis para a única cabeça da Igreja, para Cristo.

4. Toda a acção eclesial é, no sentido mais vasto, sacramental, isto é, acção representativa. Nela se realiza, se exprime, se corporiza aquilo que o próprio Deus realiza com os humanos. Por isso, só é autêntica quando dá corpo à acção de Cristo, à acção de Deus, e a torna simbolicamente visível.

5. É Deus que age na Igreja. É errado organizarmos as actividades eclesiais em função do êxito, do número. O que realmente conta é a disponibilidade para o envio sacramental, nomeadamente no anúncio da Palavra e, em sinais eficazes, chamar seres humanos para o Povo de Deus e acompanhá-los no caminho do seguimento do Senhor, dando-lhes coragem para o envio no mundo. “Êxito não é nenhum dos nomes de Deus” (Martin Buber).

6. O cerne do ministério presbiteral está em ser indicação sacramental, nos pontos nevrálgicos da vida Igreja, da comunhão entre Deus e o ser humano; e dos homens entre si. Celebrar a comunhão eucarística, sem procurar viver, – pelo menos com o mesmo peso – a comunhão quotidiana, e sem realizar a missão no interior do mundo, é algo perverso.

7. As novas realidades do nosso mundo exigem novas formas de ser presbítero. O ministério eclesial tem que ser colegial. Ése bispo no colégio dos bispos; é-se presbítero no presbitério. Quem possui o ministério da unidade deve agir unido. Mais, deve, quanto possível, viver conjuntamente, como exigia Santo Agostinho aos seus padres.

8. O padre tem de ser um homem de Deus, um mistagogo que conhece o mistério de Deus, o vive em comunhão, o celebra e o comunica com entusiasmo e alegria.

9. Anuncia uma Palavra salvadora, eficaz, de futuro e de esperança. Fá-lo com paixão por Aquele que é a Palavra e comprova a verdade do seu testemunho na compaixão pelos irmãos, verdadeiro caminho de paz e unidade. Segundo o Novo Testamento, Cristo é Sacerdote por assemelhação com os seus irmãos e não por separação.

10. É um sacerdote que incorporou a absoluta necessidade de formação permanente para possuir uma formação superior à média e poder responder com propriedade aos desafios completamente novos dos nossos dias.

11. É um padre que dedica muito tempo à formação dos leigos, não só para que a sua fé seja cada vez mais esclarecida e luminosa, mas para que desempenhem, com verdadeiro espírito missionário, as múltiplas tarefas que lhes são próprias: na família, na sociedade e na Igreja.

12. A unção do Espírito Santo, que a imposição das mãos realiza, é para que, pela acção do presbítero, aquilo que o baptizado já é sacramentalmente, se realize existencialmente, também na promoção dos diversos ministérios – nomeadamente o diaconado permanente – e em estilos de vida comunitária cada vez mais colegiais.

13. Os seminários, numa atitude maternal, devem acolher com benevolência os candidatos e saber exigir, com docilidade e firmeza, uma formação humana, espiritual, pastoral e cultural muito sólida, ancorada ainda no compromisso da formação permanente.

14. As pessoas mani festam, em esmagadora maioria, o desejo de que os sacerdotes tenham grande disponibilidade para ouvir e atender, acompanhar e aconselhar, serem alguém em quem se confia plenamente.

15. Comunicar é serviço; não é protagonismo. Mas exige séria formação. Só assim poderá haver celebrações, sobretudo da eucaristia, que sejam espelho de uma comunidade salva e agradecida. Homilias curtas, incisivas e cobrindo os pontos essenciais.

A hora de mudança e de transformações rápidas na sociedade e na Igreja exige claramente novos modos de organização da vida eclesial e novos estilos diversificados de exercício do ministério presbiteral. Os caminhos a percorrer e as decisões a tomar hão-de ser procurados, em comunidade, na escuta atenta da Palavra que nos salva e do seu rumor nas plurais palavras humanas.

Braga, 15 de Janeiro de 2010